Mulheres nas cidades

São 6:00 da manhã de uma terça-feira. Onde você está? 

Geovana sai de casa já atrasada. Normalmente demora duas horas em três conduções para chegar no trabalho que fica no centro da cidade. Mas choveu durante toda a noite e sua casa inundou. Ela, a mãe e os irmãos tentaram salvar seus móveis e demais pertences. Às 2:00 da manhã quando a chuva acalmou, ela conseguiu descansar um pouco, para acordar na sequência. Depois da chuva de ontem sabe que as ruas do seu bairro estarão alagadas, e que o trajeto casa-trabalho levará mais uma hora do que o normal.

Às 6:00 da manhã, muitas mulheres estão acordando para dar início às suas jornadas. Preparar o café da manhã da família, organizar as merendas do dia, levar os filhos na creche, tudo isso antes de chegarem ao trabalho. Há mulheres que iniciam a jornada ainda mais cedo, pois, dependendo do bairro onde moram, seus deslocamentos são ainda mais demorados. 

As experiências das pessoas nas cidades não podem ser vistas de uma forma única. Sobretudo quando colocamos o foco no cotidiano e nos desafios enfrentados pelas mulheres, em especial mulheres negras e periféricas, que têm seus corpos e suas experiências urbanas constantemente atravessadas pelas estruturas machistas e patriarcais de nossa sociedade.  Essas vivências se interseccionam com um conjunto de desigualdades e injustiças territoriais. Pensar a cidade a partir de um olhar de gênero significa tentar compreender como essas opressões se acumulam e impactam a vida das mulheres, e assim começar a vislumbrar caminhos possíveis para que essas tenham de fato direito à cidade.   

Nesse contexto, refletir sobre o acesso à moradia adequada é estruturador para compreender o acesso ou os limites do direito à cidade para mulheres. Em São Paulo grande parte da população de baixa renda, negra e parda, mora em regiões periféricas, com predominância de moradias autoconstruídas, muitas vezes em situação precária e com menos serviços públicos de qualidade, tais como creches, escolas, postos de saúde ou espaços de lazer. Por conta disso, seus moradores se sujeitam a tempos mais longos de transporte em relação a bairros mais centrais ou mais ricos. São também os bairros que têm menor expectativa de vida.

A localização da moradia determina o deslocamento cotidiano, o acesso aos equipamentos e serviços de saúde, educação, cultura, lazer, transporte público de qualidade, vagas de emprego etc. Em cidades desiguais como as brasileiras, a localização também reflete as condições físicas da casa, a formalidade ou informalidade da posse, o valor do aluguel ou do próprio imóvel, os materiais construtivos e as infraestruturas que o servem.

Essas desigualdades territoriais acentuam a vulnerabilidade das mulheres. A opressão de gênero faz com que sejam elas as principais responsáveis pelo trabalho doméstico, e pelo cuidado com crianças, idosos e doentes. A  limitação de serviços e infraestrutura próximos a moradia implicam em mais tempo de deslocamento, dificuldade de acesso ao mercado de trabalho e menos tempo livre. 

Num país onde a desigualdade social é uma das maiores do mundo, e onde o déficit habitacional atinge grande parte da população, a propriedade privada é diferenciadora de status, renda, poder. O acesso à moradia tem sido utilizado como política pública na diminuição de desigualdades de gênero. Nos últimos anos, algumas políticas e programas habitacionais como o Minha Casa Minha Vida (Faixa I) dão preferência da titularidade do imóvel a mulheres de baixa renda, chefes de família, critério que tem reconhecimento internacional como política de diminuição de desigualdade para mulheres.

Apesar da posse de um imóvel ser considerado uma garantia de segurança, tanto física como econômica, isso não diminui outras violências a que mulheres estão sujeitas cotidianamente. A grande maioria dos conjuntos habitacionais construídos pelo poder público estão localizados em regiões periféricas das cidades, e reproduzem ou acentuam a mesma lógica de urbanização excludente e segregadora dos bairros periféricos autoconstruídos. (MONTEIRO, 2015)

Uma política habitacional comprometida com a efetivação do direito à cidade e com o combate à desigualdade de gênero deve opor-se à lógica perversa de transformar o que deve ser um direito em mercadoria, viabilizando moradia adequada para a população de baixa renda em áreas centrais e infraestruturadas. Para as mulheres que habitam periferias, e que sofrem múltiplas opressões, o acesso à moradia realmente adequada pode ser um caminho para a promoção da autonomia em todas as dimensões de sua vida.

São 7:00 e Paula sabe que não conseguirá ir à universidade hoje. Ela está no ponto de ônibus acompanhada de seu avô já faz 40 minutos e o transporte ainda não passou, talvez cheguem tarde à consulta médica dele, o que significa enfrentar a lista de espera outra vez. Caso cheguem a tempo, de qualquer maneira Paula terá de correr, já que precisa buscar sua irmã mais nova na escola antes de ir ao estágio. Desde que sua avó foi internada e sua mãe saiu do trabalho para cuidar dela, as coisas ficaram mais complicadas.

Homens e mulheres têm padrões de mobilidades diferentes. Isso significa que os objetivos que motivam os deslocamentos e a forma como se deslocam pelo território são muito distintos. Para as mulheres, além do esforço e tempo do trabalho remunerado, o trabalho doméstico faz com que suas viagens sejam mais curtas e segmentadas entre o cuidado de familiares, compras, escola, lazer etc. Esse padrão de mobilidade é ainda mais parcelado para mulheres mães e/ou periféricas. 

Apesar delas serem as principais usuárias do transporte público, o planejamento das cidades e, principalmente, das infraestruturas de mobilidade, não considera os padrões de percurso característicos das mulheres, tendo como prioridade (ainda que de forma muito insuficiente) o trajeto casa-trabalho, conveniente principalmente para a população masculina cisgênera.

Além disso, é importante pensar a segurança das mulheres na cidade e em seus deslocamentos. Após analisar algumas opções de trajeto, muitas mulheres estrategicamente escolhem o caminho que muitas vezes não é o mais prático e rápido, mas aquele em que se sentem mais seguras, evitando lugares pouco iluminados ou com pouco movimento. O momento em que as mulheres transitam pela cidade, seja a pé ou no transporte coletivo, transforma o que deveria ser um dos meios de apropriação e ocupação emancipatória dos espaços públicos num momento de exposição à violência: 25% das paulistanas já sofreram assédio sexual no transporte.

Pensar a mobilidade urbana por uma perspectiva de gênero é considerar espaços e infraestruturas adequadas para a mobilidade a pé, linhas de transporte coletivo que tenham maior capilaridade e possibilidades de paradas atendendo as necessidades de deslocamento das mulheres, tarifas que não impeçam o acesso a outros serviços e direitos,  e que considerem a segurança nos trajetos percorridos, garantindo a vivência plena de nossa cidadania. 

São 10:00, Ana está acordada há 5 horas e dirige-se a uma entrevista de emprego. Há 3 horas, antes de começar seu trajeto até o centro, deixou sua filha na vizinha que é mãe crecheira e liberou uma vaga na última semana. Ana faltou na última entrevista de trabalho marcada pois não tinha com quem deixar a sua filha. No seu bairro não existe vaga na creche pública. 

Como já dito, a localização da moradia tem sido um componente central para determinar as condições de vida e uso do tempo das mulheres. Para as mulheres mães, isso impacta diretamente na vida de suas filhas e filhos e, por consequência, na sua própria vida. Nos bairros periféricos de São Paulo, por exemplo, a mortalidade infantil é até 23 vezes maior do que em regiões centrais e esses índices têm piorado nos últimos anos.

Há uma correlação perversa entre território, renda das famílias e a oferta de vagas em creches públicas - e consequentemente no número de mães empregadas. A falta de creches é um dos fatores que justifica, por exemplo, a diferença entre a participação feminina em postos de trabalho formais (52,5%) comparada com a participação masculina (72%). Somado a oferta, a localização da creche e o horário de funcionamento também condicionam diretamente o acesso às vagas de emprego para mulheres.

Formular políticas públicas utilizando a cidade como uma plataforma aliada das mulheres no combate das desigualdades de gênero significa promover a distribuição de infraestrutura e de serviços de acordo com a necessidade de mães e cuidadoras. A regra vale para serviços de educação, mas também para saneamento básico, mobilidade, saúde pública. A luta pelo direito à cidade é uma disputa multidisciplinar, multissetorial e interseccional, e que considera que o território deve ser apropriado e acessado por todos de forma igualitária. 

São 18h e Laís resolve se encontrar com uma amiga em um centro cultural público de sua cidade. Ao tentar utilizar o banheiro feminino, é agredida verbal e fisicamente pelo segurança do local, que afirma que “ali não é lugar de homem”. 

No Brasil, 86% das mulheres já sofreram algum tipo de assédio em espaços públicos [1], realidade que posiciona o país como líder nesta forma de violência. Ninguém deveria ter medo de caminhar pelas ruas simplesmente por ser quem é. Mas infelizmente isso é algo que acontece com as mulheres todos os dias. O medo provocado por tais situações cerceia o direito das mulheres de ir e vir, provocando prejuízos imensuráveis, como dificuldade de acesso à educação e ao trabalho, intensificando as desigualdades de gênero.

As mulheres trans, além de estarem submetidas a todas essas formas de violência, têm reiteradamente sua própria existência questionada e combatida nos espaços públicos e privados: mesmo com uma queda de 24% nos assassinatos em 2019 em relação ao ano anterior, o Brasil ainda é o país que mais mata pessoas transexuais, e a maior parte desses crimes ocorrem nos espaços públicos.

Pensar a cidade numa perspectiva de gênero implica transformá-la a partir das diferentes demandas, necessidades e vulnerabilidades de cada grupo social. Toda mulher que anda pela cidade é uma poderosa agente desta transformação, e o espaços públicos devem possibilitar que todas possam passear, estar, circular, protestar, amar e existir livremente e com segurança. Enfim, exercer seu direito à cidade.

São 21:00 e, depois de três horas em pé no transporte coletivo, Carmem chega em casa cansada e com fome, mas ainda precisa realizar algumas tarefas antes de descansar: é preciso passar no supermercado, buscar sua menina na casa da vizinha, preparar o jantar e já deixar pronta sua marmita do dia seguinte, além de lavar o uniforme da filha. Ela tem algumas horas de sono até à próxima madrugada, quando acorda e se prepara para cruzar a cidade uma vez mais. 

No Brasil as mulheres trabalham semanalmente 7,5 horas a mais do que os homens [2], o que, em um ano, significa cerca de 15 dias mais. Sobrecarregadas com o trabalho e organização doméstica, pouco tempo livre sobra para as mulheres.

É comum que o trabalho produtivo, aquele que a sociedade reconhece ser merecedor de remuneração, seja valorizado em detrimento do trabalho reprodutivo, habitualmente realizado por mulheres em segundas ou terceiras jornadas de trabalho. Algumas mulheres conseguem externalizar essas tarefas, repassando-as para outras mulheres, de menor renda, escolaridade, muitas vezes negras ou pardas, reafirmando a opressão de gênero, para além da classe e raça. (FARIA, 2020, no prelo)

Precisamos considerar quais espaços estão realmente disponíveis para acolherem os momentos que não são do trabalho produtivo ou reprodutivo nas cidades para todos, mas principalmente para todas nas suas diversas existências.

Como seria a vida das mulheres caso as tarefas domésticas fossem verdadeiramente compartilhadas entre todos? Será que a ocupação da cidade feita pelas e para mulheres seria diferente? Será que os deslocamentos e os trânsitos poderiam ser outros se, para além das questões de gênero, eliminássemos todas as demais violências que as cidades imprimem?

São 0:00. Onde você está?

***

As histórias de vida narradas e os dados apresentados, representam alguns dos desafios que as cidades, e mais especificamente a cidade de São Paulo apresenta para mulheres. Reconhecemos o quanto da lógica de urbanização e construção da cidade brasileira tem sido segregadora, classista, racista, ambientalmente insustentável e também machista. Como os dados e as vivências demonstram, as cidades territorializam as desigualdades, que também são de gênero, se tornando palco para violências, tanto explícitas, quanto sutis. 

É urgente que seja pautada a representatividade feminina, em todas as esferas, em toda a sua diversidade, mas principalmente ocupada por aquelas de nós que têm sido mais invisibilizadas, discriminadas e desconsideradas nos processos históricos. Defender a representatividade de gênero na política brasileira vai além do processo eleitoral. É sobre apoiar mulheres que construam as cidades de acordo com as necessidades reais de suas vidas, no campo da habitação, mobilidade, segurança nos espaços públicos, divisão do trabalho, e tudo que envolve usar, ocupar e identificar-se com a cidade que vivemos.

Neste 8M e mês de março nos propomos a refletir sobre cidades que sejam correspondentes com a eliminação de todas as opressões mas acima de tudo sobre cidades imaginadas e construídas por e para mulheres com experiências de vida que desafiam direta e cotidianamente as estruturas sexistas, racistas e classistas, é assim que reivindicamos o nosso Direito à Cidade!

Ainda que este texto seja da total responsabilidade de suas autoras, as informações e reflexões colocadas são fruto do acúmulo do trabalho desenvolvido em equipe dentro do projeto Direito à Cidade de Todas as Cores (2019-2020) e que o Instituto Pólis tem procurado compartilhar nas suas diferentes plataformas, inclusive nesta coluna.

As histórias de vida narradas no texto são fictícias ainda que inspiradas em vidas de mulheres que se cruzam diariamente com todas nós. Propomos que elas nos instiguem a refletir sobre todas as mulheres, na sua diversidade, e sobre as experiências de cidade que cada uma vive, procurando caminhos para a sua transformação, começando por cada uma de nós.

Bibliografia

FARIA, Nalu. A sustentabilidade da vida humana no centro da construção da cidade. Caderno Pólis, Instituto Pólis, 2020. No prelo.
IBGE - Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão. Aglomerados subnormais – Primeiros resultados. IBGE, Rio de Janeiro, 2010.
MARIANO, J.; SANTANA, B. Situação da mulher negra na Região Metropolitana de São Paulo: síntese dos indicadores sociais e análises preliminares. Disponível em: http://bit.ly/situacaomulhernegra
MONTEIRO, Poliana. O Gênero da Habitação: A diretriz de titulação feminina no marco do Programa Minha Casa Minha Vida. Dissertação de mestrado. Planejamento Urbano e Regional, Universidade Federal do Rio de Janeiro, 2015.

Autoras

Graciela Medina é estudante de Políticas Públicas na UFABC e estagiária no Instituto Pólis.
Lara Ferreira é arquiteta urbanista, doutoranda da FAUUSP e pesquisadora do Instituto Pólis.
Tama Savaget é advogada, cientista social e pesquisadora do Instituto Pólis .
Colaborou com a construção deste texto a jornalista Debora Pill.

Notas

1. Pesquisa realizada pelo instituto YouGov em parceria com ActionAid em 2018.
2. Dados do estudo Retrato das Desigualdades de Gênero e Raça, realizado pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) em 2017.

Sobre este autor
Cita: Graciela Medina, Lara Ferreira, Tama Savaget e Debora Pill. "Mulheres nas cidades " 09 Mar 2020. ArchDaily Brasil. Acessado . <https://www.archdaily.com.br/br/935134/mulheres-nas-cidades> ISSN 0719-8906

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